3 de jul. de 2013

Desconstrução - I

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Acordou e era noite. Porque não sabia mais como era acordar e ver o dia claro havia anos, havia vidas. Olhou pro lado e viu no mesmo quarto todos os seus amores. Se levantou e decidiu que não ia pedir pra Mulher fazer o café hoje. Deixa, ela tá tão bonita dormindo. Bebeu o resto de café de ontem, comeu um pedaço de pão seco e, com a barba cheia de migalhas, beijou a testa dos dois Filhos.

Seguiu pela rua escura com a marmita em mãos e atravessou a cidade, imperceptível. Erguia prédios maiores que qualquer sonho que pudesse ter tido em sua vida. Construções tão grandes que o engoliam e o diminuíam. A cada tijolo ele se sentia menos gente, e o pó do concreto endurecia os pulmões, porque dói respirar num lugar como esses. E então ele se deu conta de que era tijolo também. Era Homem e barro e tijolo. E talvez nem fizesse falta se não estivesse naquela parede. Respirou e voltou a trabalhar, não havia lugar pra pensamento no seu dia.

Toca o sinal do almoço.

Olhou pro céu e viu o sol. Essa é a hora que ele via a luz. Duas lágrimas pesadas escorreram. E disse em voz alta que não se deve olhar pro sol, o olho lacrimeja. Não era isso, ele sabia, mas ninguém além dele precisava saber.
Abriu a marmita e pensou na Mulher. Gostava mais da comida dela que da comida da mãe. Gostava mais dela que de si mesmo. Era por ela, sempre por ela. E mastigou devagar a comida, como nunca fazia. Sentiu com calma os temperos e os cheiros e lembrou do cheiro da Mulher quando cozinhava. Lembrou do beijo das crianças com o queixo sujo de farofa. Quando foi a última vez que almoçaram juntos? Esse novo emprego era de domingo à domingo e só tinha uma folga a cada quinze dias e ele sabia que era errado. Mas era isso ou passar fome. Hoje ele queria só sentar a mesa com eles e almoçar em paz. Duas outras lágrimas pesadas lhe correram o rosto e ele achou por bem olhar de novo pro céu, porque era sol. Deu dois passos e tropeçou.

O corpo é mais leve no ar, pensou.

"Eu vou sentir falta do cheiro do feijão."

Ele, que era tijolo, virou pedaço do asfalto no meio da Avenida, ao meio dia.

Acordou e era noite. Dormiu e era dia. Pra sempre.

Um comentário:

Mayra disse...

Soco no estômago esse texto, hen. O_O