21 de out. de 2013

Não é nada.

Sentei na beirada da cama, respirei fundo e contei até três. Com um pouco de esforço e alguma habilidade, consegui rasgar a carne, quebrar as costelas necessárias e abrir caminho até meu coração. Parei por uns segundos, sentindo-o ainda pulsar entre os meus dedos, sentindo o sangue escorrer. Contei novamente até três, mas no dois já havia puxado-o pra fora. Melhor assim, de uma vez. Então veio o alívio, seguido do vazio. Tudo o que foi e não é mais.

Não sei quanto tempo passei apenas fitando-o. Quando dei por mim, havia uma poça de sangue na cama e um coração desbotado e quieto em minhas mãos. Quisera que ele sempre fosse assim, calmo. Olhei com carinho para todas aquelas cicatrizes, beijei cada uma delas, sussurrei minhas desculpas. "Vai ficar tudo bem" - disse a ele, quase o embalando em meus braços. Dorme, meu bem. Eu velo teu sono.


Depois de algum tempo me dei conta do que precisava ser feito. Coloquei meu coração entre minhas pernas , repousando no lençol, e com o estilete fiz uma fenda, tão profunda quanto foi necessário. Elas estavam lá, eu sempre soube. Dizem que temos borboletas no estômago, mas não eu. O que tenho são mariposas no coração. Tirei então uma por uma, com tamanha suavidade, que meus dedos mal as tocavam. Elas batiam as asas, delicadas, e sumiam pela janela. Era recíproco o sentimento: elas queriam se livrar de mim na mesma proporção que eu queria me livrar delas. Todas fugiram, menos uma. Olhei suas asas com atenção e vi meu rosto refletido ali. Ela era como eu. E contra a minha vontade, ela voltou para dentro do meu coração. 

Resignada, costurei a fenda com delicadeza, ciente de que havia feito outra cicatriz. As cicatrizes me tornam mais forte, mas menos flexível. Quase caricatura do que um dia fui. Recoloco o coração dentro do peito, ajeito as costelas, costuro a carne. É pesado, mas eu preciso dele para me saber viva. Bate, meu bem. Eu prometo tentar cuidar melhor de ti. Eu prometo.

Hora de limpar a bagunça.

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Sinto você batendo asas sozinha ai dentro. Talvez aquela bagunça toda tenha sido em vão, talvez você fizesse menos barulho quando havia tantas outras ai. Mas não consigo me livrar daquilo que é tão igual, que beira o familiar. É confortável e quase narciso. É egoísta. Pode ser dos estragos, o maior, porque me entende e me conhece, melhor que ninguém. 

Me fascinei ao ver meu próprio rosto em tuas asas, quando na verdade eu devia tê-las arrancado. Tarde demais. 


                               


                                       

4 comentários:

Desembuchando disse...

Uma vez li um conto zen que dizia no fim "Não importa o que seja o problema, se for um problema deverá ser eliminado". E esse problema era um vaso raro e belo, mas era um problema e foi eliminado em um só golpe de espada.

Marcio Hasegava disse...

Mais um texto em que você me emocionou.

Anônimo disse...

Sonhei contigo de novo.... já perdi a conta de quantas vezes isso acontece... é bom mas dói ao mesmo tempo... será que ainda me chama? Será que ainda te amo?

R. disse...

Eu não posso responder as coisas por você.

Mas olá, quanto tempo.

Você sabe onde me encontrar.